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Sob um cachorro

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 Quanto tempo, queridas letras. Volto a vossa presença para relatar mais uma história. Dessa vez talvez com alguns problemas em relatar os detalhes ou a completa verossimilidade, uma vez que esse evento ocorreu há duas semanas. Como de costume, te informo que o local foi o Detran, onde eu estava para resolver a documentação de um carro.
 De princípio, chego e encaro uma das piores coisas que o mundo naturalmente criou: fila. Fico impressionado com a capacidade que as formigas tem para seguir exatamente o mesmo caminho, elas simplesmente vão fazer o seu dever: o trabalho dignifica a formiga. Eu, é claro, quando vejo essa cena, molho o meu dedo e passo pelo caminho. Destruo, assim, a comunicação de feromônio e as formigas já não sabem para aonde ir. "Revolução operária!" Grito eu. Pois bem, deixando o meu devaneio de lado, tive a tristeza de encarar essa disfunção de mundo e fui.
  Mas para a minha surpresa, o fim dessa fila me revelou dois fatos inusitados. Primeiro que uma das três pessoas que estavam atendendo era um deficiente motor, mas esse ser era mais eficiente do que os outros dois seres normais juntos. E o outro fato foi que essa fila me levava à uma senha que me colocava em uma gigantesca fila de espera. Esses dois eventos podem nos ensinar muita coisa, mas deixo a explicação para o trabalho de sua mente.
 Mas a história que eu vim hoje te escrever começa realmente agora. Essa longa fila de espera era um pouco menos insuportável, pois nós esperávamos sentados. Daí, percebi que tinha um cachorro que ficava passeando e tentando buscar uma prosa com as pessoas que estavam a esperar, mas ninguém queria conversar com ele. Nesse ponto, imaginei que talvez o cachorro estivesse pedindo esmola e não buscando uma conversa. Contudo, enquanto eu pensava a ideia que acabei de relatar, não notei que o cachorro se aproximava de mim. O melhor momento da incerteza é quando ela mesmo se apresenta para nós.
 Um cachorro? Capacidade limitada de criatividade. Loucura. Tentativa de abstração para esconder a péssima história. Acredito que um desses seja um dos seus pensamentos, talvez todos. Mas deixo aqui registrado que eu realmente tive uma breve prosa com tal animal. E digo mais: escutei mais do que falei e aprendi mais do que ensinei. Talvez realmente tenha sido um devaneio.
  Pois bem, gostaria de falar em princípio sobre o porquê de eu ter pensado que ele era um mendigo. Pensei isso por duas coisas: Primeiro que o cachorro tinha uma aparência repugnante. Era um ser ignóbil, com certas feridas, parecia ter alguma doença. Além disso, ele era um vira-lata, sua pelagem era de um louro com branco, mas toda suja. Ele também apresentava ser fraco e estar um pouco desnutrido. Assim, me parecia óbvio ser ele um mero vagabundo que não trabalhava e buscava a vida fácil nas esmolas.
 Pulo de parágrafo pois colocar as duas explicações em uma só deixaria o parágrafo muito grande, mas não sei se é correto. Não me importo, te expliquei que continuo o propósito, então você entenderá. O segundo era o fato de que ninguém dava atenção para ele. Todos com quem ele tetou conversar preferiram continuar com os seus torsos curvado em direção a caixinha de pixels. Dessa forma, parecia óbvio que qualquer que fosse o entretenimento que houvesse naquele lugar fosse mais interessante do que dar atenção ao cachorro, mesmo que fosse um cachorro falante. Afinal, mendigo é mendigo.
 Assim, você deve imaginar que a minha primeira recepção para o quadrúpede não foi a das melhores: Ele chegou ao meu lado e eu fingi estar olhando para o telão que estavam chamando as senhas.

— Fico pensando o que pode ter de tão interessantes nessas telas... Não sei se sou burro ou inteligente por não entender.


Nesse momento vi que ele não era um mendigo e pensei comigo: decerto é burro. Mas respondi:
— Cada um com suas sapiências. Você, por exemplo, é um cão falante.



— Mas não é, jovem? Veja bem, eles vivem fora da vivência. A realidade deles é um mundo irreal, virtual.
— Não é bem assim, você por não entender é que não sabe o quanto de informação é que os celulares nos trazem...
— Celulares, computadores, chips, seja o que for. Sei que em meus 18 anciões anos eu nunca vi a humanidade tão perdida. Tudo que ela criou para ganhar tempo, compartilhar conhecimento, viajar sem sair do lugar e várias outras vantagens é exatamente aquilo que faz o contrário. Vocês agora fazem parte dos pixels, não conseguem mais viverem sem eles. Ontem mesmo, estava eu na praça e percebi que só eu estava olhando para o lindo pôr do sol, com seus belos tons de laranja, esplendido. Vocês? Estavam preocupados com os seus deveres e aparelhos. Mas sabe o que é pior? É que esses são os meus que idolatram uma bela foto virtual da natureza.
— Calma, calma, não é bem assim. Veja. Eu, por exemplo, utilizo as tecnologias de forma cautelosa, busco informações, deixo as coisas supérf... me interrompe o animal.
— Não sei se vocês mentem para si ou se mentem apenas para mim. Vocês perdem tempo tirando uma foto que nuca mais irá ver ou tira apenas para mostrar aos outros, ao invés de guardar as imagens no HD da mente. Vocês passam horas vendo a vida de outros ao invés de fazer a própria vida e ainda falam "cuida da sua vida", que hipocrisia. Vocês são psicologicamente afetados por passarem o dia nesse mundo falso que é cheio de algoritmos para mostrar apenas o belo que lhes interessa, sabe o que acontece? Vocês subconscientemente buscam e tentam demonstrar pertencer à esse mundo ideal. Tudo que vocês criaram para poupar tempo, buscar informações e acelerar processos estão lhes deixando sem tempo, mais burros, preguiçosos e inaptos.


  Eu não sabia o que dizer. Na verdade eu sabia, mas o que eu dizer era continuar relutando com a ideia dele e tentando me defender. Por que não disse? Bem, no fundo eu sabia que tudo que ele disse deveria ser verdade e guardei essas palavras para pensar quando chegar em casa.

— Nesse ritmo vocês serão a próxima espécie a ganhar o Darwin Awards e entrar em extinção. Vocês caminham para a própria seleção natural. Você já pensou em colocar um ponto de interrogação em suas certezas?

  A grande questão é que eu guardei essas ideias para refletir em meu lar, mas eu já não sabia pensar fora das telas. Agora estou aqui escrevendo o que não sei fazer, digitando sem conseguir criar. Sou limitado pelas palavras que penso, e mais limitado pelas que eu não penso. Escrevo sobre o meu pecado nele mesmo. Não escrevo, digito a minha própria destruição. Mas enquanto digito sobre a minha falta de criatividade, sobre a minha finitude, sobre as minhas limitações, sobre como as telas acabam conosco, continuo sobre. Enquanto eu estiver sobre, estarei aqui eternizando o próprio paradoxo do pensamento mal feito.

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