Deito-me sobre esta tarde ociosa para escrever Discursos Fúnebres
(i) Meu próprio discurso fúnebre
Confesso que estou receoso por escrever o meu próprio discurso fúnebre e não tenho a mínima ideia das palavras que eu realmente aqui escreveria caso isso fosse de acordo com a realidade. Talvez seja. Mas trago aqui uma certeza: morto não fala, portanto, tenho aqui a oportunidade de dar voz a um defunto.
A primeira coisa que eu gostaria de falar... é que eu realmente não tenho alguma primeira e nem última coisa a falar, mas irei jogando ao longo das próximas linhas as ideias mais aleatórias que eu possivelmente falaria em meu próprio funeral. Assim, mesmo estando eu em vida e não estando em um funeral, chego próximo aos discursos que são pronunciados nesses ambientes, pois os mesmos não são tão pensados, tendo em vista a carga emocional. Neste caso é a falta de carga emocional que também me dá a liberdade de escrever aleatoriamente.
A primeira coisa é que eu não sei a idade em que eu morri, portanto escrevo aqui as palavras como se eu tivesse morrido agora, com os meus 20 anos. Dessa forma, ao contrário das somente boas palavras que as pessoas falariam para os meus parentes ou que estes falaram de mim, deixo-me para falar com a alma e falar a realidade, que nem sempre é boa.
Assim, digo que foram 20 anos de uma infelicidade e de mal aproveitamento sem tamanho. Se meu corpo fosse uma máquina, decerto estaria longe do ideal de Carnot pois o meu rendimento estaria próximo do 0. Não digo que foi infeliz por falta de recursos ou opções para tal, isso é, se isso realmente é alcançável. Mas falo exatamente por esse mal aproveitamento como um todo.
Acredito que minha infância foi uma das partes da minha vida em que foi mais 'normal', ia normalmente a escola, tinha alguns amigos, jogava futebol, gostava de ler, jogava vídeo-game e aquilo que mais tarde acabou desenvolvendo a maior parte da minha personalidade, a solidão, que de princípio me dava uma criatividade de criar um mundo subversivo dentro da minha mente que me dava acesso a um mundo que só eu conheci com todas as formações políticas e empresariais. Digo isso pois, mesmo tendo alguns amigos, passei boa parte da infância só e tinha que criar universos.
Nessa época eu tinha um empresa, um time de futebol, era jogador profissional e até mesmo anotava em um velho caderno os próximos confrontos e como estavam indo as minhas despesas.
Não posso culpar ninguém, mas acredito que essa minha característica foi ainda mais desenvolvida pelo cuidado talvez excessivo dessa que deve estar chorando agora ao lado de meu caixão, minha mãe. É claro, com o objetivo de me proteger. Penso agora que essas palavras poderiam soar fortes aos seus ouvidos, mas deixo aqui que eu realmente entendo e não falo do desenvolvimento de minha personalidade introvertida ou da minha amizade com a solidão como um real problema. Talvez não seria eu um bom defunto que estaria escrevendo essas palavras agora se não fosse o seu cuidado. Cuidado esse que me comprometo aqui em cumprir no futuro caso não seja necessário ler tal discurso em tempos próximos, mas deixo aqui escrito pois essas palavras provavelmente me deitarão em rios de lágrimas em uma leitura pessoal futura.
A nostalgia é uma coisa bela, mesmo as más memórias. Pois a nostalgia nos liga ao amor às coisas futuras, dando a essas agora um dever de serem aproveitadas. Ainda mais vindo em um discurso fúnebre, pois não há nada como o assunto morte que nos faça querer viver.
Aqui dou um salto e coloco dentro de um único pacote o final da minha infância até o final da minha adolescência. Pois foi aqui que conheci aquilo que veio para unir o mundo e as pessoas como nunca antes se viu. Mas também aprendi na juventude que isso que conheci foi o que também mais separou este mesmo mundo e as pessoas, tirando um pouco de gente do pouco que já restava em alguns humanos. Talvez nesse tempo eu tenha sofrido a minha maior morte.
Foi aí onde perdi horas, dias, semanas, meses, anos, vivendo uma vida que não existe. Rindo do que não deveria ser engraçado. Lotando minha cabeça de coisas inúteis que de nada servem. Pois é nesse local que há tudo menos o espelho da alma, pois lá só tem outros, outros e mais outros. É assim que se torna zumbi errante ainda em vida, é o torso virado para o quase nada aproveitável, e o que há de ser, seria bem mais conhecido fora deste mundo.
As drogas não são senão um meio do alívio da dor que o mundo nos causa. Algumas feridas são físicas, e para essas, drogas quando moderadas parecem ser benéficas. Outras feridas são internas, as drogas para essas parecem viciar mais e dificilmente são benéficas. Mas a maior doença é o vazio da alma que está sendo preenchida com uma viciante droga errada, que não é considerada droga, talvez seja o álcool, o cigarro, ou o outro, não sei. Dizem que o último não faz mal, mas digo, faz! Essa do outro não é altruísmo.
Agora estou no começo da idade que se chama de jovem. É aqui onde as pressões sociais de uma sociedade normal começam a se aflorar, mas confesso que não estou preocupado com isso, e morreria feliz assim. Mas sei que só não estou preocupado pois não estou no ambiente que me colocaria na situação em que tal pressão fosse um problema. Não sei até que ponto o passado construiu esse futuro, mas vejo que foi quase tudo.
Ah, é claro! Como sempre achamos que estamos certos no presente e vemos vários erros no passado, isso aqui também se apresenta. Melhor, acredito que já expus um pouco das minhas certezas de agora nos últimos parágrafos. Assim, vejo hoje como o meio termo sendo algo agradável, pois é nesse meio que nós temos uma calma para pensar e analisar os dois lados, pendendo para um dos, quando necessário e parecer certo. Foi assim que cheguei nessas últimas certezas aqui pronunciadas, definitivamente últimas pois cá agora devo estar morto. Mas no almoço de hoje pensei: será que o meio termo entre o azedo e o doce é o aguado?
Morto! Estou agora morto! Para que serviu todas essas coisas que busquei aprender e entender, colocar tudo na cabeça e... morto! Talvez aqui desse lado da vida, o de sua ausência, todas as coisas terrenas parecem não ter importância alguma. No meu caso, foi essa que acabei de falar. Perdi (?) a vida buscando entender as coisas? Imagine se nem isso eu tivesse feito!? Como eu disse, o passado escreveu o meu presente e foi esse passado que me trouxe aqui. E dada as circunstâncias de agora onde cá escrevo, digo que estou satisfeito, e mesmo que eu tenha perdido muita coisa, cozinhado os miolos sem necessidade, se cá estou, aqui deveria estar. Não posso supor a diferença que agora seria se o meu passado tivesse escrito outra coisa, pois se assim fosse, lá estaria. Mas é óbvio que ainda assim podemos aprender com o passado para melhor fazer o futuro, até que esse se torne um passado e nos leve para a mesma reflexão em outro futuro. Portanto, o que seria o humano se nós não pensássemos? Meio-termo.
Sobre o meu funeral eu tenho algumas considerações. (i). Espero que o meu corpo não inteiro esteja presente neste recinto, pois eu disse em vida que queria doar os meus órgãos e doar o que 'sobrar' para a pesquisa; (ii). Se (i) não foi cumprido, pare este funeral e doe agora para a pesquisa (já que os órgãos já não podem ser salvos); (iii) Sei que é complicado, mas não queria ter um funeral triste, portanto, gostaria que tocassem musicas interessantes, como músicas de Rodox, Rodolfo Abrantes, Crombie... minha memória de morto já não está muito boa, mas sintam-se a vontade para tocar todas as músicas que tem em meu notebook. Não ligo para o que os outros vão pensar, nunca mais os verei.
Acredito que eu tinha mais alguns comentários para fazer aqui para vocês, meus queridos vivos ouvintes, mas seria em um tom um tanto quanto instrutivo, e acredito que eu não queira isso em meu funeral. (Leia-se preguiça de escrever)
Mas você que agora escutou esse meu discurso fúnebre pensa que nesse corpo tinha um ser bem estruturado e de cabeça que só olha para as estrelas, saibas, nesses meus vinte anos tinha somente um espinho que queria virar flor. E esse espinho chorava para tentar regar a si mesmo.
Sim, não tive uma das melhores e mais aproveitadas vidas, sim, talvez tive uma vida de poucos amigos, mas um entre eles me fez encarar a morte com naturalidade e até certa ansiedade para vê-la. Este que não está sustentado por livros de filosofia, ciências, ou materialidade, mas as sustenta. É dele minha vida e esta morte que agora vocês veem é tão somente o início de uma verdadeira vida. Por que choraria ou teria medo disso? Por mais só que estive, sempre estive com alguém, por mais triste que estive, sempre estive feliz, por mais cruel e sofrida a morte que tive, morri em paz, pois a tão procurada felicidade não é encontrada em terra, mas do alto e se chama Deus.
(ii) Discurso fúnebre de Carolaine Marinho
Confesso que não sei como iniciar este discurso, nem mesmo sei se deveria estar escrevendo tal coisa, mas a falta de uma realização de tal pedido que fiz deu-me aqui a ideia de escrever este. Pode parecer estranho que eu esteja aqui falando alguma coisa sobre ela, mas tive a oportunidade de conhecê-la durante alguns meses que antecederam tal tragédia.
Ela foi a pessoa que me não escreveu o meu discurso fúnebre. E como eu disse, com a ideia de escrever este com ela ainda em vida, perguntei-lhe o que ela "queria ouvir" em seu funeral...
Acredito que ela tenha me dito três coisas, mas enquanto escrevo estas linhas só lembro de um: Penso que ela queria que eu vos soubesse fazer a ideia que ela tinha de morte. Dessa forma, deixo aqui um entre os pensamentos que ela desenhava: A morte para ela era algo mais confortável do que pode parecer para muito de nós, pois ela tinha a visão de que a morte era tão somente o começo de uma vida eterna, que acredito que seja no céu (não falaria isso), a morte para ela era uma simples passagem desse mundo material para um mundo que ainda desconheço mas que deve ser incrível. Ela não temia a morte, mas a encarava com um passo natural da vida, o fim da vida, mas não o seu término. Sei que esse momento onde estamos prestes a ter que dar um adeus ao seu corpo material é algo difícil, mas acredito que seja menos agoniante após sabermos essa ideia dela. Ou não, nesse momento não tem palavras que possam confortar nossos corações.
Penso que ela também me disse que não queria um velório muito triste, mas disse que isso era impossível com palavras parecidas com as últimas que terminei o último parágrafo. Mas este último não sei se realmente foi um pedido ou algo que meu cérebro inventou enquanto eu tentava lembrar dos outros. Minto, perguntei para ela no passado de agora ainda em vida e ela disse que era para eu falar apenas sobre a morte... Disse.
Qualquer confissão que eu aqui fizesse sobre ela seria estranho, pois como já disse, apesar de termos gastado alguns minutos em prosa, vocês não sabiam sobre isso. Assim, deixo aqui as palavras clichês, mas nesse caso não menos verdadeiras. Ela era uma pessoa incrível, eu sigo uma linha de pensamento em que sei que todas as pessoas são diferentes, cada cabeça é um mundo, mas a maioria desses mundos são como estrelas vistas daqui, pois vistas de longe são bem parecidas. Não ela. Ela tinha um jardim florido em si, não pintava com as mãos, mas desenhava com seu olhar distraído. Estava sempre em terra, mas voava como um colorido balão através do seu pensamento. Se os antigos gregos, que tinham a mania de transformar em estrelas em constelações os falecidos ou os mitos, estivessem aqui, eles teriam um sério problema para decifrar, pois essa menina esfinge era em si mesmo um universo.
Como o último pedido dela: Aproveitem o cafezinho e peguem os desenhos que o passado dela deixou, aqueles bem rabiscados, chamados de malcriados